12 agosto 2010

103 anos do nascimento de Adolfo Rocha, futuro Miguel Torga (1907)

[...] Recebi, como v. me disse que receberia, o livro Rampa, de Adolfo Rocha. Passados uns dias — mais do que deveria ser — escrevi-lhe uma carta agradecendo o livro e dando, resumidamente, uma opinião. Como escrevi à pressa, para não demorar mais a resposta e o agradecimento, transferi a redacção para o sr. Eng. Álvaro de Campos, cujo talento para a concisão em muito sobreleva ao meu. O resumo da minha opinião, de cuja expressão o citado engenheiro se encarregou, é de que o livro é interessante (é, realmente, muito interessante) como sensibilidade, mas imperfeito e incompleto como uso dela; e é o uso da sensibilidade, e não a própria sensibilidade, que vale em arte. Não deixei de ser elogioso, até onde pude sê-lo; para além de onde podia sê-lo, confesso que o não fui.

Recebi, pouco depois, uma carta do Adolfo Rocha, que me deixou, durante um quarto de hora, perplexo sobre se deveria ou não responder. A carta é de alguém que se ofendeu na quarta dimensão. Não é bem áspera, nem é propriamente insolente, mas (a) intima-me a explicar a minha carta anterior, (b) diz que a minha opinião é a mais desinteressante que ele recebeu a respeito do livro dele, (c) explica, em diversos ângulos obtusos, que os intelectuais são ridículos e que a era dos Mestres já passou.

A carta não tinha, realmente, resposta necessária; achei pois melhor não responder. Que diabo responderia? Em primeiro lugar, é indecente aceitar intimações em matéria extrajudicial. Em segundo lugar, eu não pretendera entrar num concurso de opiniões interessantes. Em terceiro lugar, eu só poderia responder desdobrando em raciocínios as imagens de que, na minha pressa, o sr. Eng. Álvaro de Campos se servira em meu nome; e isso me colocaria numa situação de prosa ainda mais intelectual e ainda mais de Mestre (com maiúscula) do que a anterior. Desisti. Patere et abstine, recomendavam os Estóicos.

(Fernando Pessoa, Correspondência (1923–1935), 102, pp. 212–213)