The true method of metaphysical examination has been indicated to us by Descartes — the method of universal doubt. [...] We can understand what Descartes meant, but his words are badly chosen. Let us attempt to correct them.
(Fernando Pessoa, Textos Filosóficos, vol. I, p. 108; em inglês no original)
[ O verdadeiro método de análise metafísica foi-nos indicado por Descartes — o método da dúvida universal. [...] Podemos perceber o que Descartes queria dizer, mas as suas palavras foram mal escolhidas. Vamos tentar corrigi-las. ]
Quando o público soube que os estudantes [...], nos intervalos de dizer obscenidades às senhoras que passam, estavam empenhados em moralizar toda a gente, teve uma exclamação de impaciência. [...]
(Álvaro de Campos, “Aviso por Causa da Moral”, Crítica, p. 200)
Tudo é prosa. A poesia é aquela forma de prosa em que o ritmo é artificial. Este artifício, que consiste em criar pausas especiais e anti-naturais diversas das que a pontuação define, embora às vezes coincidentes com elas, é dado pela escrita do texto em linhas separadas, chamadas versos, preferivelmente começadas por maiúscula, para indicar que são como que períodos absurdos, pronunciados separadamente. [...]
(Álvaro de Campos, Poemas Completos de Alberto Caeiro, p. 275)
Diz Campos que a poesia é uma prosa em que o ritmo é artificial. Considera a poesia como uma prosa que envolve música, donde o artifício. Eu, porém, antes diria que a poesia é uma música que se faz com ideias, e por isso com palavras. Considerai que será o fazerdes música com ideias, em vez de com emoções. Com emoções fareis só música. Com emoções que caminham para as ideias, ou se agregam ideias para se definir, fareis o canto. Com ideias só, contendo tão-somente o que de emoção há necessariamente em todas as ideias, fareis poesia. [...]
De António Nobre partem todas as palavras com sentido lusitano que de então para cá têm sido pronunciadas. Têm subido a um sentido mais alto e divino do que ele balbuciou. Mas ele foi o primeiro a pôr em europeu este sentimento português das almas e das coisas, que tem pena de que umas não sejam corpos, para lhes poder fazer festas, e de que outras não sejam gente, para poder falar com elas. O ingénuo panteísmo da Raça, que tem carinhos de espontânea frase para com as árvores e as pedras, desabrochou nele melancolicamente. Ele vem no Outono e pelo crepúsculo. Pobre de quem o compreende e ama!
(Fernando Pessoa, “Para a memória de António Nobre”, Crítica, p. 100)
A arte do Botto é integralmente imoral. Não há célula nela que esteja decente. E isso é uma força porque é uma não hipocrisia, uma não complicação. Wilde tergiversava constantemente. Baudelaire formulou uma tese moral da imoralidade; disse que o mau era bom por ser mau, e assim lhe chamou bom. O Botto é mais forte: dá à sua imoralidade razões puramente imorais, porque não lhe dá nenhumas.
[...] Sou também discípulo de Caeiro, e ainda me lembro do dia — 13 de Março de 1914 — quando, tendo «ouvido pela primeira vez» (isto é, tendo acabado de escrever, de um só hausto do espírito) grande número dos primeiros poemas do Guardador de Rebanhos, imediatamente escrevi, a fio, os seis poemas-intersecções que compõem a Chuva Oblíqua («Orpheu» 2), manifesto e lógico resultado da influência de Caeiro sobre o temperamento de Fernando Pessoa.
(Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, 101)
Nota: Em carta a Adolfo Casais Monteiro, datada de 13 de Janeiro de 1935, Fernando Pessoa apresenta uma cronologia ligeiramente diferente: Alberto Caeiro ter-se-ia manifestado pela primeira vez a 8 de Março de 1914, aquele que classifica como «o dia triunfal da minha vida».
Para lembrar que nem só de entidades oficiais (Censura, com "C" maiúsculo, ou a designação politicamente correcta em voga na altura) — que nem só de entidades oficiais, dizíamos, vive a censura, apresentamos de seguida como tornar o poema VIII d'O Guardador de Rebanhos num «Poema do Menino Jesus», com os cumprimentos de Maria Bethânia...
O texto a preto (normal) é o texto original de Caeiro, mantido por Maria Bethânia (a menos das naturais e pouco importantes falhas de memória.
O texto a azul sobre fundo amarelo (assim) é texto dito por Bethânia, mas que não faz parte do original de Caeiro (uma vez mais, não assinalamos as diferenças triviais, que pensamos serem meras traições da memória).
O texto a branco sobre fundo azul (assim) é o texto que faz parte do original de Caeiro, mas que foi cortado por Maria Bethânia; nalguns casos, admitimo-lo, sem intenção — mas a maioria... Feliz Dia Mundial Contra a Censura!
O GUARDADOR DE REBANHOS — VIII POEMA DO MENINO JESUS
Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas —
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o Sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
RoubaColhe a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou —
«Se é que ele as criou, do que duvido.» —
«Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres.»
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
……………………………
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre.
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.
A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.
A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.
Ao anoitecer brincamos às cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.
Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do Sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o. Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o na minha cama, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpotodo humano E todo materno até ele estar nu.
Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
……………………………
Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
……………………………
Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?
(Alberto Caeiro, Poemas Completos de Alberto Caeiro, pp. 52–57
com uma "ajudinha" de Maria Bethânia)
Ainda sobre este poema, convirá citar o próprio Fernando Pessoa:
[...] escrevi com sobressalto e repugnância o poema oitavo do Guardador de Rebanhos com a sua blasfémia infantil e o seu anti-espiritualismo absoluto. Na minha pessoa própria, e aparentemente real, com que vivo social e objectivamente, nem uso da blasfémia, nem sou anti-espiritualista. Alberto Caeiro porém, como eu o concebi, é assim: assim tem pois ele que escrever, quer eu queira quer não, quer eu pense como ele ou não. [...]
(Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, 106)
Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histero-neurasténico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenómenos de abulia que a histeria, propriamente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. [...]
[...]
Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos ser dogmáticos). Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar.
(Fernando Pessoa, Correspondência (1923–1935), 162, pp. 340–341)
Cartoon de Rui Pimentel (1988)
Notas:
Teresa Rita Lopes (Pessoa por Conhecer, vol. I, pp. 167–169) lista 72 dramatis personae pessoanas, isto é, personagens do «romance-drama-em-gente» criado por aquele «que brincava a ser muitos». Dois dos nomes (truncados) apresentados por Rui Pimentel não constam dessa lista: “César Augusto” e “Hermínia”, este último com muitas reservas da nossa parte, pois as letras são pouco mais do que vestigiais (sendo esta a única possibilidade que nos ocorre como compatível com o pouco que se lê).
Teresa Rita Lopes (op. cit., p. 172) refere o facto de 72 ser o número de discípulos de Cristo (Lucas 10:1; algumas versões referem 70 e não 72, indefinição numérica habitual na mística judaica); a autora faz ainda inúmeras referências (por ex., pp. 83, 160, 163) à aspiração de Pessoa a ser «toda a gente» e à relação disto com Deus («Deus é toda a gente»), no fundo, a aspiração a ser Deus («Quanto mais personalidades eu tiver [...] Mais análogo serei a Deus»). No entanto, parece escapar a esta autora um facto importante: na tradição cabalística, 72 são precisamente os Nomes de Deus.
A lista de Teresa Rita Lopes inclui personagens correspondentes a diferentes níveis de despersonalização: os heterónimos aceites por Pessoa como rigorosamente tal (Caeiro, Reis e Campos) e semi-heterónimos (Soares, Mora); tradutores e divulgadores estrangeiros da cultura portuguesa em geral e da obra de heterónimos pessoanos em particular (Search, Crosse); autores diversos (ensaístas, críticos literários, poetas, contistas, jornalistas...), de quem existe alguma obra, ainda que fragmentária; colaboradores dos “jornais” da infância e juventude; autores fictícios referidos nesses jornais; poetas revelados em comunicações mediúnicas... Teresa Rita Lopes não incluiu na lista Fernando Pessoa ortónimo nem «conhecidos inexistentes» como, por exemplo, o capitão Thibeaut ou o Chevalier de Pas, adoptando o critério de apenas listar aqueles em que «o brincar a ser muitos atingiu o nível da escrita» (p. 173). No entanto, alguns autores fictícios do tempo dos jornais de infância apenas são referidos enquanto tal (incluindo título das supostas obras), não havendo provas de que Pessoa chegou de facto a escrever em nome deles; por outro lado, Pessoa afirma ter escrito cartas a si mesmo em nome de Chevalier de Pas (ainda que essas alegadas cartas não sejam conhecidas).