06 maio 2009

Acordo Ortográfico (I)

O argumento da uniformização é uma coisa, a base em que uniformizar é outra. Sobre as vantagens da uniformização ortográfica estamos, creio, todos de acordo; não o estamos sobre a ortografia que haja de ser a uniforme.
Também não o estaremos, suponho, sobre a imposição da ortografia. Que, tomada certa ortografia por oficial, dela use o Estado nas suas publicações, não é mais que inevitável e justo. Sobre o que sejam, para este efeito, «publicações do Estado» haverá um pouco mais de dúvida. Os documentos oficiais, «Diários do Governo», etc. por certo que são publicações do Estado. Os livros de estudo primário — isto é, os por onde se aprenda a ler — usados nas escolas do Estado, também o serão. Que tem, porém, o Estado com os livros que se empregam nas escolas particulares? Que tem com os livros que servem, não para ensinar a ler, mas para ensinar coisas que neles se lêem?
A ortografia é um fenómeno da cultura, e portanto um fenómeno espiritual. O Estado nada tem com o espírito. O Estado não tem direito a compelir-me, em matéria estranha ao Estado, a escrever numa ortografia que repugno, como não tem direito a impor-me uma religião que não aceito.

No Brasil a chamada reforma ortográfica não foi aceite, nem ainda hoje, depois de assente em acordo entre os governos português e brasileiro, é aceite. Quis-se impor uma coisa com que o Estado nada tem a um povo que a repugna.

(Fernando Pessoa, “Ortografia”, Pessoa Inédito, 119, p. 248)