A palavra falada é um fenómeno natural; a palavra escrita é um fenómeno cultural. O homem natural pode viver perfeitamente sem ler nem escrever. Não o pode o homem a que chamamos civilizado: por isso, como disse, a palavra escrita é um fenómeno cultural, não da natureza mas da civilização, da qual a cultura é a essência e o esteio.
Pertencendo, pois, a mundos (mentais) essencialmente diferentes, os dois tipos de palavra obedecem forçosamente a leis ou regras essencialmente diferentes. A palavra falada é um caso, por assim dizer, democrático. Ao falar, temos que obedecer à lei do maior número, sob pena de ou não sermos compreendidos ou sermos inutilmente ridículos. Se a maioria pronuncia mal uma palavra, temos que a pronunciar mal; diremos
anedóta, embora saibamos que se deve dizer
anédota. Se a maioria usa de uma construção gramatical errada, da mesma teremos que usar: diremos «hás de tu compreender», embora saibamos que «hás tu de compreender» é a fórmula verdadeira. [...]
(Fernando Pessoa, Pessoa Inédito, 113, p. 242)